Por Ricardo Soares
O advento da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) deixou claro que o Brasil embarcou definitivamente na tendência mundial de reconhecimento à privacidade como direito fundamental do cidadão. Entretanto, muitas empresas e – principalmente – as que integram o ecossistema do varejo ainda não perceberam o papel fundamental que este segmento da economia possui na proteção de dados dos seus clientes.
Percebo nas conversas com meus clientes que uma grande dificuldade na criação da cultura de privacidade é abandonar o que chamo de compulsão por acumulação de dados. Explico: acumulador de dados é aquele empresário ou companhia que coleta e armazena o maior número de dados possível sobre os seus clientes na esperança de que, um dia, eles possam ser utilizados para agregar valor ao negócio.
Parte deste comportamento surgiu juntamente com o crescimento das ferramentas de big data, que possibilitam a exploração dos dados para encontrar correlações que permitam a criação de oportunidades de venda. Todos conhecem pelo menos um exemplo de uso de correlações aparentemente inusitadas de dados. Por exemplo: uma rede de supermercados X descobriu que há um acréscimo na venda de fraldas e cervejas em determinados dias da semana, o que é explicado pela visita de pais, fãs de esportes, que compram suprimentos básicos para acompanhar sua programação esportiva no conforto de casa.
Com este tipo de situação, empresas de todos os portes passaram a coletar o máximo de dados para alimentar os seus sistemas de CRM (Customer Relationship Management), os quais se tornaram economicamente acessíveis nos últimos anos. Mas, sem estratégia, isso torna-se apenas uma quantidade excessiva de dados, sem nenhum propósito específico e sem nenhuma previsão de utilização.
Lembro-me da personagem Emília, de Monteiro Lobato, que tinha sempre uma caixinha de “utilidades”, com coisas inúteis como uma tesourinha de uma haste só. Às vezes, uma das bugigangas da Emília até ajudavam a personagem a fugir de uma situação embaraçosa.
O problema nessa abordagem de acumular aquilo que não serve para o seu negócio é que ela é incompatível com a LGPD, além de implicar em uma desnecessária exposição dos consumidores à riscos, sem qualquer benefício.
Não estamos acostumados a pensar que vazamentos de dados podem trazer riscos reais para as pessoas. Entretanto, imagine o risco trazido para a família do herdeiro de um império industrial se uma quadrilha especializada em sequestros descobrir que, todas as quartas-feiras, às 16h, um funcionário do pet shop é recebido em sua residência para buscar seu cãozinho de estimação. Ou ainda, pense o que ocorreria se Hitler tivesse acesso a uma lista com os nomes e endereços de todos os judeus e ciganos residentes na Alemanha.
Não estou advogando que as empresas devem parar de coletar e produzir dados pessoais. Pelo contrário: conforme a tecnologia avança, os negócios são amplamente beneficiados pela capacidade de processamento e de cruzamento de informações para encontrar novas oportunidades de se manter relevante e sustentável.
Tenho acompanhado de perto empresas que utilizam as informações de seus clientes com grande sucesso, respeitando completamente a LGPD. Um exemplo disso é uma rede de lojas que conseguiu atingir um aumento de 13% no volume anual das compras dos clientes antigos por meio da identificação de oportunidades de vendas. Para isso, um software de CRM foi utilizado para localizar clientes fiéis que compravam em determinados departamentos, mas não em outros. De posse desses dados, um trabalho de marketing direcionado foi feito para divulgar os produtos não consumidos.
O resultado foi extremamente positivo uma vez que a loja estava se comunicando ativamente com clientes que já tinham um relacionamento anterior (portanto, mais receptivos ao contato). Esse tipo de ação está em perfeita conformidade com a legislação, desde que a base legal adequada seja utilizada para fundamentar o tratamento.
E é a isso que a LGPD impele os negócios: ela enfatiza a necessidade de aplicar inteligência à coleta de dados – para que somente os dados relevantes sejam solicitados – e também a criação de uma nova cultura de proteção de dados, principalmente no ramo do varejo, responsável por tramitar informações extremamente sensíveis e valiosas. Ou seja, devemos ampliar o cuidado para que estes dados sejam tratados de forma compatível com a importância que tem. Como dizia o Uncle Ben, “grandes poderes trazem grandes responsabilidades!”
Cabe a nós, participantes do segmento de varejo, grandes consumidores (e produtores) de dados pessoais, assumirmos o nosso papel de guardiões desse valor. E, mais do que isso, tornar a segurança uma prioridade no relacionamento com os clientes.
Ricardo Soares é professor do workshop Criptografia e LGPD oferecido pela Universidade AFRAC (Associação Brasileira de Automação para o Comércio), diretor técnico da Solares TI, criador do Portal Minha LGPD e dos cursos Mapa LGPD e LGPD para software houses.
FONTE: Varejo SA
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